sexta-feira, 15 de maio de 2009

Duas latas de cerveja e um rosto estatelado no pára-brisa

Faz dois anos que estou morando com Ann. Nem sei direito como isso aconteceu. Parece que ela morou durante quase dez anos com um cara que a maltratava. Que ele nunca a respeitou direito. Bater não batia. Mas era grosseiro. Eles terminaram e eu estou aqui com Ann e nesse tempo que moramos juntos só trabalhei quatro meses. Ganhei algum dinheiro. Emprestei trocados para alguns amigos. E bebi o resto. Talvez tenha pagado umas duas ou três contas. Fora isso ela sempre me sustentou. Cada trago tomado e cigarro que caiu na minha mão saiu do bolso dela. Não há orgulho em trabalhar. Nem humilhação em ser sustentado. Hoje é sábado. Ela vai fazer um curso em outra cidade. Está tentando arrumar um terceiro emprego.

- Volto depois das 9:30 da noite!

- Ok... e quem vai te buscar?

- Um colega do trabalho!

- Tudo bem então, faço alguma coisa pra comer, mas me deixa algum trocado!

Me deixou dez pratas. A buzina tocou lá fora e ela foi embora. Liguei a tv e assisti três horas de imagens coloridas. Desde que inventaram o controle remoto e o botão de mudo assistir televisão se tornou um programa mais divertido. Bebo algumas cervejas e fico imaginando o que as pessoas na tela estão falando. As vezes tento fazer leitura labial. Parece que sou bom nisso, poderia até arrumar um emprego de leitor labial. Ou será que eu queira acreditar que tenha alguma habilidade além de beber e dormir. Dormir é o que faço melhor. Exceto me masturbar. Até bater na máquina perde o sabor se tenho um travesseiro ou batendo uma punheta. Agora é hora de uma boa cochilada.

Durmo umas duas horas a fio. O sofá azul de veludo que Ann comprou depois que eu vim pra cá é o melhor lugar para descansar. É macio e sedoso. Já dormi em lugares ruins. Em camas estreitas. No chão. No carro. Ao relento. Posso me dar ao luxo de dormir em um sofá azul de veludo. Um banho e uma punheta. Essa é a melhor decisão do meu dia. Até vou fazer a barba pra ficar mais novo. Tenho de deixar os buracos deixados pelas espinhas no meu rosto respirarem de vez em quando. Umas lâminas depois. Ganho três a quatro anos a menos na minha aparência. Tinha de parecer bonitão. Ou pelo menos simpático pra não sofrer nenhuma rejeição imediata já que ia para uma festa. Ganhei de um convite de um amigo para essa festa em um grande clube. O cara ia ser o porteiro. Nem revistado eu seria. Não tocariam na minha intimidade. Minhas bolas estariam a salvo de um aperto brutal.

Pego o carro zero comprado a prestação por ela, dou uma olhada no retrovisor. E vamos gastar as dez pratas diárias ganhas por parasitar essa casa. O clube já estava cheio. Para o carro em uma rua colateral. Aceito o pedido de um garoto para viajar o carro e vou para a entrada. Áquila, era o nome do cara que me deu o convite. Ele está lá sentado em um cubículo recebendo o dinheiro e fazendo sorrisos agradáveis para pessoas estranhas.

- E ae cara, é só entrar!

- Pode ir lá, já dei seu nome pra Regina!

- Regina, esse ai ta liberado. – ele grita da cabine usada como caixa para a venda de convites.

Ninguém tocou em mim. Passei pela portaria e fui atrás logo é de onde se vendiam bebidas. Uma mulher lá pelos quarenta e cinco anos me atende com um sorriso vendido. Compro uma cerveja e vou olhar o lugar. Estava cheio de gente nova. Garotos que não passavam dos vinte anos de idade. Pulando ao som de uma batida infernal. Só tinha batida a música, parecia que alguém cantava, mas não se ouvia nada além de batidas. O local parecia um ritual tribal. Todos dançando. Alguns casais se pegando nos cantos. Outros tentando a dança certa para acasalar. Rapazes já sem camisa e garotas com mini roupas. As mini roupas são maravilhosas. Mas as batidas me expulsaram dali.

Voltei para a entrada da festa. Áquila provavelmente seria a única companhia que teria aquela noite. Passei algumas horas conversando com ele. O assunto principal foi à música. O sexo. As garotas loucas pra achar alguém que lhes pagasse uma bebida. Que no máximo dariam uns beijinhos no cara. Mas se na chave do carro tivesse um emblema caro, ela seria dele aquela noite e mais algumas até conseguir o que queria. Gostava disso. Conhecia o jogo. Perdia sempre. Mas conhecia o jogo. Sempre fui procurado por garotas estranhas. As loirinhas com maquiagens muito bem feitas nunca vieram pra mim. Se vierem um dia meu vigor e vontade de tê-las já não será mais o mesmo.

Mais duas cervejas e é hora de voltar pra casa. Vou preparar um grude antes que Ann chegue. Tenho de buscá-la em um posto de gasolina onde o seu amigo vai deixa-la. As minhas noites têm sido assim há algum tempo. Poucas mulheres. Ou nenhuma. E muita conversa de bar. No balcão ou na mesa de bar sempre se acha bêbados diferentes. O mundo é cheio deles. E cada um tem uma história diferente para lhe contar. Mas todos já tiveram a melhor mulher do mundo. Conheceram o que é o amor e a riqueza. Mas é a vida como eles dizem. Uma hora se ganha, outra hora se perde. Eu não tenho nada a perder. Nunca tive a melhor mulher do mundo. Conheci pouco do que dizem ser o amor. E nunca fui e provavelmente nunca serei rico. Vivo parasitando uma mulher desiludida com a idéia de amor e relacionamento entre homem e mulher. E se um dia eu tiver todas essas coisas saberei como viver sem tê-las.

Dou uns trocados para o garoto que vigiava com os olhos fixos no meu carro e vou embora. Minha noite estava normal. Passava os olhos nas garotas que andavam de salto alto pelas ruas. Os travestis já estavam trabalhando no lugar de sempre. E já tinha tomado algumas cervejas. Só não esperava que depois de virar uma rua que dava para uma avenida um bêbado em uma lambreta velha atravessaria na frente do meu carro. Ainda olhei as meninas que estavam do outro lado da rua esperando eu passar para atravessar começarem a gritar quando eu ia bater em um infeliz. Voltei os olhos para o bêbado que começava a subir em cima do capo do carro. Nossos olhares se cruzaram. Ficaram fixos um no outro durante poucos milésimos de segundo. Ele voava para cima de mim. Se não fosse o para brisa parando a sua face e fazendo seu nariz quebrar ele teria vindo diretamente sobre mim.

Com o pé atolado no freio o carro para e joga o bêbado na rua. Ele cai nos pés das garotas que estavam na beirada da rua. Elas continuaram a gritar. O cara estava no chão. Em segundos a rua que estava vazia lotou de gente. Chamei uma ambulância e a polícia para fazer uma ocorrência do acidente. O cara se levantou e recusou tratamento médico. Implora para que não chamasse a polícia. No mesmo instante aparece um carro amarelo e busca o atropelado. Deixou moto lá mesmo e foi embora. Deixou o carro de Ann amassado e um monte de asas de frango espalhadas pela rua. Havia ido ao açougue buscar frango para assar em um churrasco. Um amigo do atropelado vem até mim bêbado. Dizendo que o cara realmente estava mais bêbado do que ele e que pagaria todo o conserto do carro porque ele não era de beber e era um bom homem que assumia suas responsabilidade. Acreditei no amigo bêbado do atropelado.

Que importa o conserto do carro. Queria ver como eu explicaria para Ann o ocorrido. E estava perto da hora de buscá-la. A polícia chegou anotou tudo que tinha de anotar. A ambulância veio, mas o atropelado tinha já sumido. As pessoas começaram a ir embora e eu também fui para casa. Lá liguei para o celular de Ann e a avisei sobre o acidente e que não poderia ir buscá-la no posto e que o amigo dela a trouxesse para casa. Na hora que lhe contei nem gritou ou falou alguma coisa a mais. Apenas disse que estava tudo bem e que quando chegasse as coisas iam se resolver. Tomei um banho. Botei uma cueca e fui para o quarto deitar. Antes de pegar no sono só conseguia ver o rosto estatelado do cara no meu pára-brisa. Um segundo realmente pode ser uma eternidade quando se passa por um acidente de carro.

3 Clicks:

Fábio W. Sousa disse...

Esta narrativa ficou bastante boa, percebe como é difícil nos livrarmos dos acontecimentos que nos cercam? Quando conseguirmos nos livrarmos disso acredito que estaremos prontos. Fundaremos nossa geração beat em Anápolis. Seremos os pioneiros.

Anônimo disse...

Gostei da narrativa, obrigado por acrescentar a minha pessoa na história. Acho que vc poderia escrever mais sobre suas experiências de vida, como essa que acabou de descrever. Você tem o dom da escrita, sabe descrever bem os personagens, sabe contruir um enredo, visualiza o ambiente adquadamente.

Áquila Raimundo Pinheiro Lima

Camila M. Morais disse...

Realmente a vida cotidiana deixa todos assustados.
Com essa narrativa me lembro de como gostaria de ser a tempos ... totalmente livre dos afazeres de uma mulher comum.
Mais ... se bem que o meu querido homem usável poderia ser menos - detestável.
Ainda penso em algo parecido, mais com algum bonitão jovem cheio de vida e carinhoso.

Emilíana Torrini - Jungle Drum


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