sexta-feira, 29 de maio de 2009

The real folk blues

Tinha acabado um livro de Kerouac e vesti meu blue jeans pensando que definitivamente não sou como os beat’s. Eles amavam o jazz. Prefiro um blues. Gosto de ouvir Sony Boy com sua gaita me fazendo esquecer da poeira que bate nos meus olhos todos os dias. Ainda mais aqui onde só se tem construções. Até que eu chegue no metro vai ter muito chão e muito pó. Prometi levar dois livros pra dois amigos. Mas para comprá-los vou ter de andar muito. Pelo menos até o metro e depois dentro de sebos e livrarias. Mas a minha recompensa será uma boa cerveja na volta. Meu aniversário chegando e eu indo comprar presentes para os outros.

A estação se parece com uma sala de espera. Daquelas onde ninguém se conhece, mas sabe o porquê de se estar ali. Todos se olham e praticamente se conhecem. Dividem o mesmo fato. A mesma história por alguns minutos. Mas ao se passar da porta do metro as coisas mudam. Ainda mais no final do dia. Os rostos cansados, abatidos e domestificados dos trabalhadores mostram o resultado de seu trabalho. Os únicos que não parecem cansados são os jovens com menos de 18 anos. Ainda não sentiram a humilhação de se vender e valorizar o fruto da sua venda pessoal.

Um banco vaga ao meu lado. Todos se olham. Me olham. Esperam que eu sente. Esperam. Me olham denovo. O banco ainda está vazio. Um careca senta com a satisfação de um animal quando recebe um carinho do dono. Mas o seu sorriso não muda por muito tempo, logo ele se junta a multidão de pessoas cansadas. Apóia a cabeça na palma de sua mão e o cotovelo na janela. Mesmo que por uma estação ele deixará o peso da sua vida escorrer naquele banco.

Na minha cabeça ainda vem à melodia de Sony Boy. Sua gaita é impressionante. Me faz até ter um sorriso bobo estampado na cara. O ritmo balbuciante do metro nos trilhos me lembrou a sua batida. A boa música não vai me abandonar. Ela nunca abandona quem a espera.

Na última estação eu desço. Horário de pico. Final de expediente. Milhares de pessoas rodeando o mesmo lugar. Acima da estação de trem há uma central de ônibus com dezenas de bancas ao redor, pode se comprar de tudo ali. De aparelhos eletrônico a um bom estimulante mental. Ali é onde toda a população que conheceu apenas a moral do operário se encontra. Esse é o meu lugar. Onde acho os meus iguais. Pastores evangélicos pregam nas escadas, e seus fieis distribuem folhetos prontos para lhe conceder o perdão dos seus pecados e o Reino dos Céus de forma instantânea. Mendigos rodeiam os bares pedindo mais um trago diário.

É fácil identificar as prostitutas que rondam os ônibus. Elas são as únicas a terem a maquiagem muito bem feita e provocante. No final de expediente. Não há baton que resista na boca de uma mulher que trabalhou oito horas seguidas. Mas o dia para a prostituta só está começando, a noite é o seu local de trabalho. Seu andar tem um balançar único. Elas sabem como movimentar suas pernas. Poucas são a mulheres que sabem mexer as pernas como se deve.

Chegando a porta da estação tenho duas escolhas, ir para a esquerda ou a para a direita. A direita irei para um Shopping atrás da minha busca literária. A esquerda tenho a possibilidade de respirar o cheiro de urina jogado no concreto frio de uma galeria de lojas que um dia foi um centro de diversões para adultos. A pior escolha deve vir primeiro. O Shopping. Nunca aprendi a andar nesses lugares. As mulheres ali nunca me excitam completamente. Me sinto ignorado, inexistente. Perdi uma hora em vão. Não achei o que          queria.

A minha recompensa está há alguns metros dali. O antigo centro de diversões. A sua imagem a distância é bela. O concreto me chama com sua frieza. Um cigarro vem a minha boca quase que instantaneamente. Essa fumaça me alivia. Sua cor acinzentada é pura. Como as galerias que me esperam. No meio dessas galerias encontrei três igrejas evangélicas, vários cafés, lojas de discos, sapatos, livros jurídicos, um velho sebo que estava fechado e vários bares no centro de todas as lojas. Tinham mais três cinemas pornôs onde se paga de 10 a vinte 20 e recebe um pacotinho de lenços de papel para se limpar ao término da sessão. Cada cinema pornô parecia competir com cada igreja.

Escolho o bar. A mesa. A cerveja e logo arrumo companhia. Um contador se senta na minha mesa. Ofereci um assento para ele.

- Tudo bom? Prazer meu nome é Carlos. – se apresenta depois de sentar.

Com tantas mulheres passando e se oferecendo pra nós por apenas uns trocados logo nossa conversa cai sobre como as mulheres podem ser safadas. Ele começa então.

- Cara, eu era amante de uma mulher. Ela largou o marido e hoje nós namoramos. Olha pra tu ver como são as coisas.

- Tu já aceitou que é corno? – dou uma boa golada na minha cerveja e espero a resposta.

- Que isso cara! Ela não faria isso! – me respondeu com os olhos estufados, dou mais uma golada pra poder dar a resposta que ele já sabe.

- Ela traia o marido com você, agora ela te trai com outro. Nunca subestime uma mulher que conheceu o sexo nos braços de outro homem. – ele coça a cabeça, se preocupa e muda de assunto.

Algumas cervejas depois e quase uma carteira de cigarro vou voltar pra casa sem os livros e com um jornal ganho gratuitamente na estação de ônibus. Com o nome perfeito, o jornal se chama “O Coletivo”. Um bom jornal, tem notícias locais e do mundo todo, além de uma seção de variedades. No metro ainda há os trabalhadores cansados. O balanço recomeça e a batida do blues me vem a cabeça.

Uma loira se encosta no primeiro apoio depois da porta do metro. Deveria ter uns 40 anos de idade, mas o tempo parecia não ter tocado muito o seu corpo. Tinha apenas as mãos um pouco machucadas. Com as unhas feitas, das mãos e dos pés, uma calça que realçava o formato de seu corpo ainda capaz de ceder a noites e mais noites sobre uma cama qualquer. Ela limpa o rimel de seus olhos. Todos os homens ao seu redor a observam, pelo menos por alguns instantes, até sentirem que aquela mulher de olhos verdes era irredutível. Com uma aliança de casamento nova no dedo, ainda brilhava bastante, o marido deu de surpresa para ela, talvez tentando renovar os votos de um casamento de anos, era maior que o seu dedo, deslizava, mas não caia. Por isso deveria ser um presente surpresa.

Ela tira metade de uma barra de cereais de sua bolsa. Deve trabalhar muito. Nem teve tempo de comer aquela pequena barra inteira. A devora. Seu rosto mostra que sentira o sabor da satisfação. Aplacara sua fome. Ninguém parecia mais a observar. Eu não deixaria de olhar para uma mulher tão melodiosa. Ainda mais quando percebo seus olhos incharem. Limpa novamente o rimel. Faz isso várias vezes. Começou a chorar. Um choro contido. Preso dentro do peito. Limpava cautelosamente para que nenhuma lágrima escapasse de seus dedos ágeis. Mas lágrimas são pesadas. As dela pareciam de chumbo. Uma consegue fugir de sua agilidade. Escorre e vai parar na ponta de seu lábio superior. Limpa e contém o choro. Ninguém viu essa lágrima cair.

Em alguns instantes chegarei na minha estação. Seguro no mesmo apoio que ela. Espero as portas se abrirem. Me aproximo de seu ouvido e digo a única coisa que poderia sair da minha boca.

- Foi lindo, te ver chorar!

Desço e paro diante da porta. Acendo meu último cigarro e volto pra casa. Quero terminar de ler “O Coletivo” ainda hoje.

1 Clicks:

R.R. disse...

"Limpava cautelosamente para que nenhuma lágrima escapasse de seus dedos ágeis. Mas lágrimas são pesadas. As dela pareciam de chumbo. Uma consegue fugir de sua agilidade."
deu pra sentir a dor dela no que você escreveu...
Parabéns!^^

Emilíana Torrini - Jungle Drum


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